Na esquina em que se encontram Natsume Soseki e Oswald de Andrade

Livro de Minae Mizumura aborda dinâmica entre línguas dominantes e periféricas, ocidentalização, acesso a conhecimento, disseminação de ideias e reflete o papel do autor e da literatura nacional

Cheguei a Minae Mizumura e ao incrível The fall of language in the age of English por acaso, por meio de um artigo sugerido pelo Instagram. Ainda sem edição em português, infelizmente, o livro aborda o impacto para as línguas e literaturas nacionais frente à universalidade e potência do inglês e em meio à era digital — principalmente do japonês e demais línguas que pertencem a localidades remotas e/ou a culturas periféricas.

Mesmo tendo o foco principal no japonês, a abordagem de The fall of language ultrapassa as barreiras de idioma e território. Problematiza mais do que a língua em si (posto que língua é um aspecto imbricado à cultura e identidade cultural): toca o hegemonismo do Ocidente, o expansionismo ao longo dos séculos, o imperialismo do século XX e os efeitos negativos da globalização — cuja liturgia é feita em inglês — para as línguas e literatura nacionais.

Além de abordar conceitos relacionados a línguas universais, locais e nacionais e ao desenvolvimento da escrita, a autora contextualiza aspectos históricos, econômicos, geopolíticos e sociais mundiais desde a Antiguidade e suas ligações com a formação de línguas. Traça paralelos entre história, cultura, identidade e língua para refletir o cânone, acesso a conhecimento, literatura nacional, a figura e o papel do autor, intelectual ou escritor nacional frente à produção literária de seu país; tudo isso num traço que começa no passado e ruma às implicações da era digital.

O fluxo de pensamento vivaz e lépido de Mizumura nos alcança na tradução de Mary Yoshihara e Juliet Winters Carpenter, esta segunda já tradutora de obras anteriores da escritora. Levando em conta os inúmeros desafios com os quais a tradução de uma obra em japonês pode contar (simplificação de ideias, por exemplo), a possibilidade de identificar a voz de um autor traduzido é algo realmente especial num livro.

Nesta postagem, indico alguns pontos da leitura que considero reflexões bastante importantes para todos os falantes e membros de uma língua nacional não hegemônica, mas em especial aqueles que, assim como eu, trabalham com a língua e a palavra.

Puxando o fio da meada

Para puxar o fio da meada, no capítulo um, Mizumura parte da própria experiência: primeiro como uma pessoa cuja língua mãe é o japonês (idioma peculiar e não dominante) que viveu nos Estados Unidos da América como imigrante por parte da adolescência e da vida adulta. Depois como uma escritora que optou por fazer literatura em sua língua materna (no final desta postagem, falo mais dessa experiência de Mizumura e de sua trajetória literária).

A experiência em um programa para escritores estrangeiros na Universidade de Iowa (EUA), a que frequentou quando mais jovem, é também ponto de partida para as ideias que irá expor. Com olhar aguçado, Mizumura relata os dias entre os colegas escritores, oriundos dos mais diferentes países, Mongólia, China, Lituânia, Ucrânica, Argentina, Chile etc.

Em passagens ora espirituosas, ora tocantes e reflexivas, a autora comenta e analisa fatos que demonstram o lugar à margem que ela e seus pares ocupam como escritores no panorama mundial. Reflete, ainda, o sentimento de estarem numa espécie de universo cifrado durante os dias em Iowa e a sensação de deslocamento por pertencerem a culturas minorizadas e escreverem literatura em línguas não hegemônicas em meio a um empuxo ocidentalizante.

Língua, identidade e literatura nacional

Minae Mizumura aproveita também a experiência com os colegas escritores do programa em Iowa para versar sobre os motivos que fazem um autor de língua não dominante optar por escrever ou não em sua língua natal, os exófonos.

As consequências dessas escolhas para o indivíduo, para a nação e para a existência da literatura nacional, inextricavelmente ligada à língua nacional, também começam a ser abordadas neste ponto. Igualmente às contradições de se ser um escritor que, pela natureza da profissão, almeja repercussão universal, mas, ao mesmo tempo, tem consciência da importância de fazer valer a própria identidade por meio da literatura na língua materna. Ambos os temas serão retomados e destrinchados em mais detalhes ao longo de todo o livro.

Acesso ao conhecimento e alcance de ideias:  bilinguismo e privilégios

Antes de um tour histórico pela formação das línguas, do japonês, da literatura nacional deste país e do futuro das línguas nacionais na era digital, Mizumura traz à baila um importante ponto para sua construção narrativa e que relaciona hegemonia de línguas e ocidentalização ao acesso a conhecimento e influência e alcance de ideias. Trata-se, nesse contexto, dos privilégios a que desfrutam, em diferentes escalas, indivíduos nativos de língua inglesa e pessoas bilíngues que entendem, leem, são fluentes ou escrevem em inglês.

Ser um indivíduo nativo em inglês, fluente ou que entenda este idioma nos dias de hoje, em diferentes gradações, é ter fronteiras expandidas de conhecimento e possibilidades mais largas. Para esses há acesso ao considerado “mundo” em vigência. A ele é possível acesso ao conhecimento que “deve ser adquirido”, a livros que “devem ser lidos”, de acordo com o cânone ocidental. Mesmo como ouvinte, a ele é permitido participar, ainda que como mero ouvinte ou espectador, da conversa global. Assim foi também no passado, àqueles que entendiam o grego na Antiguidade, o latim ou o francês em suas épocas áureas.

Agora, se para qualquer pessoa ou profissional ter acesso ao conhecimento que se “deve adquirir” no mundo, imagine para aqueles que exercem de alguma forma a atividade intelectual, como pesquisadores, professores, escritores? Imagine então, os que, entre esses, têm como língua nativa o inglês e podem ter sua voz e ideias proclamadas através das fronteiras do mundo, moldando conhecimento.

O que é feito daqueles que não leem em uma língua universal? E aqueles que, por escolha ou falta de opção, não escrevem na língua global dominante?

É justo que apenas algumas pessoas tenham acesso ao conhecimento considerado “válido”?

É justo que apenas parte do conhecimento do mundo e das diferentes formas de viver estejam à disposição porque são escritos em uma única linguagem considerada relevante?

É justo pensar que existe uma forma de viver universal porque há somente ela sendo escrita numa única via que se considera relevante?

É justo que o mundo tenha acesso apenas à uma porção (a ocidentalizada) das ideias/viveres circulantes?

Não, não é justo. Questões abordadas e problematizadas todas por Mizumura em seu livro.

A hegemonia entre línguas: da Antiguidade aos dias de hoje

A hegemonia entre línguas é um fenômeno global e antigo e não uma inovação do inglês. E para nos mostrar isso, no segundo e terceiro capítulos de The fall of language in the age of English, Mizumura nos carrega por uma jornada ao passado, pela Antiguidade à contemporaneidade, do apogeu e ladeira abaixo de outras línguas dominantes e universais, como o grego, o latim e o francês em relação ao restante do mundo.

Por meio da análise de processos entre línguas dominantes e não dominantes, a autora discorre sobre imposição cultural e do Ocidente a diversas nações em diferentes momentos da história e os consequentes impactos para os povos oprimidos e para a humanidade.

Porém, se, por um lado, a retrospectiva histórica de Mizumura mostra como povos expansionistas sufocaram (e sufocam) ao longo da história, de Alexandre da Macedônia a política imperialista ocidental do século XX, nações e línguas não dominantes, por outro, nos mostra como essas dinâmicas puderam, em um movimento simbiótico entre duas línguas (ou mais), dar origem a algo “completamente” novo: a consolidação das línguas nacionais por meio da escrita.

Antes do início da era ocidental de exploração do século XV, grande parte do mundo não tinha escrita. Foi por meio da tradução de escritos de determinada língua dominante para as línguas locais vernaculares que muitas línguas se consolidaram e adquiriam também sua versão escrita.

O próprio japonês teve origem nesse sistema de tradução de uma língua dominante.  Mizumura explica que, como faziam parte da sinosfera, era muito comum que os japoneses fossem bilíngues, falando e até escrevendo em chinês em meados da Era Moderna. E, embora japonês e chinês fossem idiomas completamente distintos, a amálgama que os japoneses fizeram na produção da própria língua escrita é uma das coisas mais encantadoras e emblemáticas.

Japonês e chinês nem sequer têm a mesma genealogia. Mas os japoneses bilíngues lançaram mão do ideograma chinês, sistema que se baseia em símbolos que representam ideias, diferente do nosso sistema latino, que tem letras, sílabas e fonemas, e adaptaram-no para escrever sua língua vernacular. Com alguns acréscimos e numa jornada ainda mais ousada de adaptações e incorporações, reunindo três sistemas de escrita — o gracioso hiragana ひらがな, o espartano katakana カタカナ e o denso kanji  漢字 —, os japoneses chegaram mais ou menos como sua língua é hoje configurada.

Tradução: o papel fundamental dos bilíngues

O papel dos indivíduos bilíngues e a tradução no processo de surgimento das línguas nacionais é outro aspecto interessante em The fall of language in the age of English. Se, ora, há uma tradução, houve um alguém que traduziu. Alguém capaz de transitar entre os dois mundos, com conhecimento da língua dominante e, ao mesmo tempo, da vernacular e que se dispusesse a adaptar os escritos de determinada língua à sonoridade da língua oral local. Uma verdadeira artesania, que permitia a circulação e proliferação de ideias, garantia que outras pessoas tivessem acesso a determinado conhecimento e ia além, abria caminho para o estabelecimento de um comércio de escritos e publicações na língua local na Idade Moderna.

Assim, para Mizumura, diante desse processo, o indivíduo bilíngue se estabeleceria como um agente fundamental no surgimento de diversas línguas nacionais, que chegaram, umas com mais outras com menos adaptações, até os dias de hoje.

Japão e a República Mundial das Letras

O quarto e o quinto capítulos deThe fall of language se voltam ao principal objeto de análise do livro: aprofundam a formação da língua nacional japonesa e de sua literatura moderna, dando destaque ao seu status como uma literatura maior no panorama da República Mundial das Letras.

Já a problematização entre a universalidade do inglês em relação às línguas nacionais na era digital, assim como o futuro das línguas nacionais são retomados em maior profundidade e em toada de conclusão nos dois capítulos finais.

Devorar, deglutir, misturar com nossas entranhas

De fato, o multiculturalismo pode ser um processo valioso e enriquecedor de escambo de saberes e modos de vida. O problema é que, em relação à cultura ocidental, esse multiculturalismo não parte da mistura de elementos em pé de igualdade, mas de uma cultura “maior” para uma minorizada. Nesse sentindo, creio que um dos maiores desafios de Minae Mizumura em sua escrita é problematizar sem, contudo, tornar-se chauvinista.

É claro que para o japonês (e culturas que como ele não seguem a temporalidade do ocidente, tampouco o alfabeto romano), a “superioridade” da língua inglesa é muito mais ameaçadora do que para outras, como o nosso português ou o espanhol, por exemplo. Mas até mesmo em países “ocidentalizados” é impossível não ter espanto ao pensar em como somos sucumbidos não só pela língua, mas pela cultura. Incorporamos o estrangeiro em nossa linguagem, à mesa, à moda, ao estilo de vida e importamos o nosso modo de pensar. Sem perceber, entramos numa espécie de aculturação paulatina definitiva em que nos transformamos: no entanto, não somos eles; e muito menos somos mais nós.  

Estamos diante de um processo de apagamento, que substitui falares e modos pouco a pouco, até que ninguém mais se lembre deles e o estrangeiro se torne a verdade absoluta? Infelizmente, em alguns aspectos sim. As consequências? Mizumura especula algumas… Mas é difícil ter certeza. Pelo menos não enquanto se vive a história que corre.

Eu, por garantia, fico por aqui a conjurar a turma de 22, pedir bênçãos e conselhos antropofágicos a Oswald de Andrade para devorar, deglutir, misturar com as entranhas, reelaborar e preservar o que é nosso, o que nos faz únicos e brasileiros.

Sobre Minae Mizumura e sua obra

A japonesa Minae Mizumura (1951, Tóquio, Japão) viveu parte da adolescência e da vida adulta nos Estados Unidos, o que foi determinante para sua formação como gente, leitora e, sobretudo, autora. Quando tinha 12 anos, a empresa que o pai trabalhava o transferiu para uma filial em Nova York. Minae, a mãe e a irmã vieram junto, e a família se estabeleceu em Long Island.

A adolescência de Minae fora atravessada por um significativo sentimento de inadequação. Crescia nos EUA, terra de oportunidades e da língua universal, mas se sentia párea. Como se mudou em uma idade já avançada para que o idioma estrangeiro fosse aprendido de forma natural, tinha o japonês bem estabelecido e falava mal o inglês. Ainda, não se enxergava nem era reconhecida como dali, pois na década de 1960 o Japão ainda não era para o resto do mundo sinônimo de exotismo luxuoso. Minae tinha a alma em diáspora.

Além disso, tinha uma culpa velada por estar na terra de oportunidades, tão sonhada por outros milhares de japoneses, e desprezar tal experiência. Aos poucos, sentia que pertencia menos ao lado de lá, mas também não se arraigava onde vivia.

O resultado foi um banzo que a fez agarrar-se à sua cultura por meio de clássicos da literatura japonesa moderna, alimentando um dia retornar à pátria de sua origem e infância. Os livros chegaram por meio de um tio-avô de sua mãe, cujo intuito era o de que as meninas não esquecessem a língua materna.

Compondo a sua própria canção do exílio, Minae evitou o inglês o quanto pôde. Se aliou ao francês na escola e acabou por ser formar em literatura francesa. Aos trinta anos, finalmente, retornou ao Japão e deu início à jornada como uma entre tantos romancistas que escolhem fazer literatura em suas línguas-mãe, incorrendo em todos os riscos (e as benesses) que não publicar em inglês pode ter a um escritor: ter a voz restrita e em desvantagem à daqueles que publicam na língua universal.

O primeiro romance de Mizumura, Light and Darkness Continued (1990), é considerado um dos livros mais expressivos de sua geração. Nele, a autora dá continuidade ao romance Luz e escuridão: um romance inacabado, de Natsume Soseki, pai da literatura moderna japonesa (e autor que inspirou o título desta postagem). A reprodução do estilo único, clássico e não mais usual de Soseki elevou a escritora à condição de importante romancista e legou ao seu primeiro livro o status de intraduzível (não há ainda tradução em inglês).

O segundo livro, o semiautobiográfico An I-Novel, publicado em 1995, já refletia a experiência cindida da escritora. Trata-se de uma publicação autobiográfica ficcionada, que se passa em um único dia, no qual a personagem, uma jovem Minae, se vê às voltas com o desejo de retornar à terra natal e a vida nos EUA.

Além de abordar questões sensíveis sobre aqueles que vivem expatriados, o livro é considerado uma obra-prima por conta da forma: apesar de ser em japonês, é escrito da direita para a esquerda e na horizontal, diferente do padrão de escrita japonês: de cima para baixo, da direita para a esquerda. Além da escrita japonesa, ao longo da narrativa, há soltas palavras em inglês, que simulam a vivência de Mizumura entre duas línguas, entre dois mundos, ilustrando de forma primorosa não só a própria experiência de Mizumura como expatriada, mas de todos aqueles que pertencem a culturas não hegemônicas, mas são forçados a viver em um mundo cifrado universalizado por uma única verdade.

Infelizmente, An I-Novel também não possui ainda edição em português.