Sou uma leitora não linear, pode-se assim dizer. Tenho o hábito de ler vários livros ao mesmo tempo, iniciar outros antes de concluir leituras anteriores, retomar livros depois de semanas ou até meses. Ao mesmo tempo, não é incomum me atracar com um livro e ler de um fôlego só. Ou seja, cultivo leituras mornas e ardentes com o mesmo amor e carinho.
É assim que funciona para mim, principalmente porque esta dinâmica me permite fruir o livro de acordo com o meu humor e as situações do dia: um livro para uma viagem rápida de metrô, um livro para quando a cabeça não quer pensar muito, um livro para momentos mais reflexivos…
O fato de ter me rendido definitivamente à leitura digital colabora para o fluxo constante de novas leituras e retomadas. Eu continuo amando livros físicos, cheiro de livros, flanar por horas em livrarias, mas só compro livros impressos quando não tenho escolha ou quando quero muito o livro por alguma razão afetiva. Além disso, não tem coisa mais gostosa do que você querer um livro e ter quase que imediatamente seu desejo satisfeito em três ou quatro cliques.
Este ano, minha lista de lidos, não concluídos, ainda por concluir ou definitivamente abandonados foi grande. Chega de blá, blá, blá e vamos ao que interessa: os livros.
Para não matar o leitor ou a leitora de tédio, não vou falar sobre cada livro de 2021, apenas os que elenquei como os que mais gostei na lista Quatro + e que, aliás, não aparecem em ordem de “gostância”, mas aleatoriamente, posto que não sou boa em eleger livros “mais preferidos”, afinal.
Lidos
Nada ortodoxa, Deborah Feldman
De cu pra lua, Nelson Motta
Pessoas normais, Sally Rooney
Todas as cores do céu, Amita Trasi
As alegrias da maternidade, Buchi Emecheta
Um casamento americano, Tayari Jones
Fique comigo, Ayòbámi Adébáyò
Cidadã de segunda classe, Buchi Emecheta
A vida mentirosa dos adultos, Elena Ferrante
Nós mulheres, Rosa Montero
Um amor incômodo, Elena Ferrante
O ano das bruxas, Alexis Henderson
Por que gritamos, Elisama Santos
Lidos – Os quatro +
Torto arado, Itamar Vieira Junior – Foi um frisson em torno desse livro no início do ano, né?! Nove de dez influenciadores cult-bacaninhas postavam selfies indicando como uma leitura transformadora. Isso me fez QUASE ter implicância e não ler. Mas li. E gostei muito. Uma história poética, de personagens complexos e que salienta o caráter atemporal da miséria colonial-rural-migratória-urbana brasileira. Ao longo da leitura, não se sabe se toda a história aconteceu há cem ou vinte anos, apenas consegue-se mais ou menos precisar o tempo por uma ou outra sutilíssima referência, o que, a meu ver, aponta justamente para esse caráter atemporal infeliz da nossa miséria. É como se as consequências do nosso passado (colonial, escravocrata) refletissem de tal forma em nosso cotidiano que a nossa miséria fosse, por vezes, atemporal e impossível de datar. É como se vivêssemos (e vivemos) imersos no continuum da nossa miséria. Se o autor fez isso de forma deliberada ou intuitiva, não sei, mas foi o que mais me marcou em Torto arado, um livro belíssimo que, apesar do hype (ai, que preguiça), é mesmo especial.
Suíte Tóquio, Giovana Madalosso – Quando li a sinopse desse livro, achei que não fosse conseguir engrenar, afinal, fala de uma criança que é raptada pela babá. Como mãe, achei que fosse ter calafrios durante a leitura. Mas ler a primeira frase da Madalosso em Suíte Tóquio é um caminho sem volta. A primeira linha já te fisga. Aí, meu amor, você se apaixona pela forma como a autora constrói aquelas personagens tão humanas e contraditórias, tão heroínas e odiáveis ao mesmo tempo. A escrita da Madalosso neste livro te leva pela mão. Ritmo e fluxo ágeis são construídos de forma preciosa. Há humor, ironia, desespero, riso e choro naquelas linhas. É um livro que eu queria “desler” para poder ter novamente, de forma inédita, todas as sensações que tive na primeira leitura.
O amante, Marguerite Duras – Reeditado em 2020 no Brasil, este livro é inesquecível. A narrativa autobiográfica de Duras é ainda mais potente em O amante, repleta de simbologias, e muito imagética. É uma jornada não linear sobre o envolvimento de Marguerite ainda adolescente com um chinês rico e mais velho no Vietnã, onde a autora cresceu. Este livro transborda a ousadia inspiradora de Marguerite, uma pessoa peculiar, que, apesar de todo o caos familiar em que cresceu, e talvez por isso, tenha se tornado uma mulher com um olhar e sensibilidade únicos para a vida.
Virgínia mordida, Jeovanna Vieira – Nos agradecimentos, a autora, estreante, diz que se inspirou no estilo da Giovana Madalosso para construir seu primeiro livro. De fato, há a fluidez e o ritmo rápido, certeiro, porém harmônico, característicos da escrita de Suíte Tóquio, assim como descrições muito imagéticas. Mas há também algo todo peculiar e único em Virgínia mordida, um livro cativante do início ao fim e cuja história acontece em torno de uma mulher contemporânea e bem-sucedida que luta para sair de um relacionamento abusivo com um homem branco esquerdomacho, “desconstruidão” e metido a intelectual — perfil, infelizmente, tão em voga nos dias atuais.
Além de personagens cativantes, construídos com primor e verossimilhança, a autora elabora uma forma bastante interessante de representar para o leitor a ancestralidade da personagem principal e seus significados. O arco do personagem do namorado abusivo também se dá com precisão, o que nos leva muito claramente do constrangimento à repulsa, da culpa ao medo, sentimentos que Virgínia experimenta pelos estágios de sua jornada de libertação. E isso é, afinal, nada mais, nada menos, a concretização do objetivo de todo autor: fazer o leitor viver por meio de seus personagens. E seus personagens ganharem vida por meio dos sentimentos do leitor.
Lendo
Quarto de despejo, Carolina Maria de Jesus
Mythos, Stephen Fry
Relendo
Jogo da amarelinha, Julio Cortázar
Lavoura arcaica, Raduan Nassar
Uma certa paz, Amós Oz
A mística feminina, Betty Friedan
Iniciados, em espera, mas não esquecidos
Blink, Malcom Gladwell
Frantumaglia, Elena Ferrante
A guerra não tem rosto de mulher, Svetlana Aleksiévitch
Em nome dos pais, Matheus Leitão
Os enamoramentos, Javier Marías
O poder do hábito, Charles Duhigg
Hit makers, Derek Thompson
Mais forte do que nunca, Brené Brown
Flertando seriamente
Os tais caquinhos, Natércia Pontes
Dança dos dragões, George R. R. Martin
Copo vazio, Natalia Timerman
O segredo do meu turbante, Agnès Rotger e Nadia Ghulam
Dica de leitura
Peixes de aquário, de Rafaela Tavares Kawasaki (Editora Urutau), foi um dos livros em que trabalhei como preparadora/revisora este ano e que me encantou imensamente. Eu costumo ficar apaixonada, in love, curtindo um crush por cada livro e autor que preparo ou reviso, mas estar com esse livro foi muito especial. Trata-se de uma história sensível e sob um ponto de vista pouco explorado: o de imigrantes japoneses que vieram ao Brasil trabalhar nas lavouras durante o século XX. São daqueles livros nos transformam por nos reconhecermos na universalidade do que desconhecemos, mas que nos une como seres humanos.