Um livro único e inesquecível, assim descrevo, de chegada, A número um, publicado em 2015 por Raquel de Oliveira, nascida na favela da Rocinha, em 1961. Trata-se de um relato autobiográfico, no qual a autora narra sua vida da infância – subjugada pelo racismo, pela miséria, negligenciada pela família e já submersa em situações de vulnerabilidade e crime –, à idade adulta, quando, sobrevivendo à margem, casa-se, na década de 1980, com o chefe do tráfico local e vem a, posteriormente, se tornar a cabeça do crime organizado da favela.
Julio Ludemir, membro da FLUPP, responsável pela orelha do livro, destaca a publicação como especial entre obras que abordam o tema do tráfico e da realidade nas favelas brasileiras, como Cidade de Deus” (Paulo Lins) e “Abusado” (Caco Barcellos), uma vez que é construída em primeira pessoa, e não em terceira pessoa. Mas A número um vai além…
A maioria dos livros famosos que aborda o tema da violência e criminalidade o faz sob a partir de personagens homens (reais ou fictícios). E, mais, em muitas ocasiões as mulheres criminosas são apenas coadjuvantes, masculinizadas ou, o extremo, caracterizadas de modo a satisfazer uma espécie de fetiche que as relaciona com a ideia de sexy bad girl. Por isso, A número um é ainda mais especial: traz ao foco a vivência dentro do crime pela ótica de uma mulher e, ainda, em primeira pessoa. O livro oferece a ótica não de uma mulher que observa, mas de uma mulher protagonista da criminalidade e não apenas alguém ligado a um criminoso, como uma esposa, namorada ou mãe de bandido.
Relato pungente, mas de leitura fluida
Raquel é membro de uma família totalmente desestruturada. Foi negligenciada pelos pais: abandonada pela mãe, violentada pelo pai e vendida pela avó a uma casa “especializada” em prostituir meninas. Em vida adulta, apesar de ter dois filhos, Raquel experiencia a vivência familiar ao lado do bando do marido, composto por “capangas” e meninos soldados do tráfico.
A leitura é fluida, mas não sem sobressaltos, com reviravoltas inusitadas e de carga dramática intensa. Se não fossem produto do da miséria e violência a que estão submetidas tantas e tantas pessoas dentro das periferias brasileiras, cujo resultado é um estiramento capaz de criar situações inimagináveis à dignidade humana, poder-se-ia dizer que algumas situações foram inspiradas nos mais elaborados roteiros de filmes de máfia e crime organizado.
A autora desfia um relato primoroso e articulado sobre sua vida, em uma narrativa livre de preconceitos, assim como oferece leitor a oportunidade de conhecer realidade crua dos oprimidos, da qual grande parte da sociedade privilegiada exime-se de conhecimento.
É preciso abandonar preconceitos e alienações para empreender uma leitura da realidade “real” das linhas de A número um e, dela, colher aprendizados que nos tirem de vez da inércia e omissão frente à situação de milhões de crianças e mulheres vulneráveis, negligenciadas do dia que nascem até o dia que morrem – quase sempre em um trágico desfecho. Raquel sobreviveu para contar. Quantas sequer têm a chance?