“Incêndios” e o caráter universal das tragédias

Conheci Incêndios pelo filme, produzido em 2010 (direção de Denis Villeneuve), e não pela peça homônima, escrita pelo libanês Wajdi Mouawad (no original, Incendies, 2003).

Se não me engano, era madrugada de um dia de Carnaval, eu estava zapeando, até que parei no filme em um corujão do Telecine Cult. A atmosfera densa e dramática me prendeu e tornou Incêndios uma das minhas histórias preferidas. É daquelas narrativas que, mesmo desconfiando do que está por vir, quando a verdade surge, suga o som ao redor e causa uma grande suspensão de ar.

Nawal Marwan, uma palestina radicada no Canadá, morre e deixa para os filhos gêmeos (Jeanne e Simon), em testamento, uma trilha de volta à sua terra natal e duas cartas: uma deve ser entregue ao pai deles, que era dado como morto, e, outra, a um irmão mais velho, perdido. Somente após entregar as cartas, o túmulo de Nawal poderia receber uma lápide, já que, nas palavras deixadas em testamento “nada de epitáfio para aqueles que não cumprem suas promessas”.

Aos gêmeos é dada a tarefa de seguir os vestígios do passado da mãe e, aparentemente, tratar de uma redenção que não lhes dizia respeito. No entanto, a jornada reserva mais do que a descoberta daquilo que fez de Nawal uma mulher obtusa, guarda a genealogia desconhecida de Jeanne e Simon.  

Simon resiste em meter-se numa viagem sem sentido, rumo ao pretérito perfeito de uma mãe que, para eles, sempre fora ausente e incompreensível. Então, é Jeanne que se lança no encalço do futuro do pretérito de sua família. No Oriente Médio, em um país cujo nome não é precisado no filme, Jeanne se depara com a vida pregressa não conhecida de sua mãe. Na juventude, Nawal foi expulsa de sua vila pela própria família, árabe cristã, por namorar um refugiado. Ao chegar à universidade, adere à militância oposicionista. Com a guerra civil, se torna uma presa política. Na prisão, é estuprada continuamente e engravida.

A história em si de uma palestina militante comunista que, durante a década de 1980, lutara por seus ideais, fora presa e, anistiada, reconstruíra a vida em outro país já teria sido um roteiro com grande potencial de captura. No entanto, há muito mais, já que Incêndios é sobre o caráter universal das tragédias, sobre existir apesar de uma tristeza imposta pela própria verdade, da qual é impossível a nós nos dissociarmos, com a qual parece ser inimaginável existir, mas que “com” e “apesar de”, escolhemos (precisamos?) seguir.

Fiquei surpresa ao constatar que Incêndios fora, na verdade, criada como um roteiro teatral. Sabe como é, o vício nas narrativas cinematográficas me fez esquecer, por um momento, que as histórias mais pungentes conhecidas desde sempre, como as tragédias gregas, não foram escritas para um livro (pelo menos não como concebemos o livro hoje), muito menos para as facilidades não lineares das películas.  São histórias que só precisam da profundidade do ser humano e de suas relações como cenário para serem montadas. Tudo já está ali, já faz parte dos espaços mais nebulosos da nossa existência, desde o antepassado mais remoto: medo, sobrevivência, amor, ódio, a necessidade de redenção. E é por isso que falam tão fundo conosco, pois tocam naquilo que nem sabemos saber, só sentimos.

Filme e peça estão disponíveis para quem quiser assistir. No Globo Play é possível assistir ao filme. Já a peça, desde o início da pandemia e, bom, não sei por quanto tempo, está aberta e de forma gratuita numa plataforma chamada Espetáculos Online. Nesta última, montada em 2013, há Marieta Severo no papel de Nawal e direção de Aderbal Freire-Filho. Vale assistir aos dois, pois a construção primorosa de ambas as produções oferece ao espectador nuances sutis e emocionantes de uma mesma história.

Reprodução da peça “Incêndios” no site Espetáculos Online

Se você gosta de dramas densos, que nos arrebatam e fazem-nos repensar toda a nossa existência, veja Incêndios. Prepare-se, é um caminho sem volta.