Cânone e o autobiográfico na literatura brasileira

A teoria impessoalidade de T.S. Eliot versus “Inquietudes na poesia de Drummond”, de Antonio Candido, em contraponto com novas poéticas da pós-modernidade

O objetivo deste artigo é analisar proposições dos textos Tradição e talento individual de T. S. Eliot e “Inquietudes na poesia de Drummond” de Antonio Candido (do livro Vários escritos) a respeito da validação da poesia e do fazer poético em meio às perspectivas de uma criação literária impessoal ou de uma criação literária poética autobiográfica.

Ademais, a proposta é demonstrar como preceitos apresentados em ambos os textos sobre uma teoria da impessoalidade (em Eliot) e do distanciamento (em Candido) para validar uma criação lírica podem não ser suficientes para dar conta de poéticas diversas, especialmente as contemporâneas, de cunho expressivamente autobiográfico.

Em extensão, pretende-se refletir sobre como prerrogativas como as de Eliot e Candido estão alinhadas a conceitos tradicionais de cânone e questionar os mecanismos de construção canônico frente a perspectivas da contemporaneidade.

De início, é preciso dizer que a discussão em torno do fazer textual, suas esferas temática, estética e formal literárias, do que se consiste ou não em arte e, principalmente, do que são literatura e poesia não é recente. Muito pelo contrário. Já na Antiguidade, para citar apenas os exemplos mais amplamente difundidos, a Retórica indicava os ditames do fazer escrito para definir o que seria considerado um “bom” texto, um texto “válido”, digno de ser perpetuado. Pouco mais à frente, Aristóteles buscava com sua Poética capturar o que hoje entendemos livre, diverso e incapturável: o fazer literário e poético.

A Retórica e a Poética são pilares intersticiais da cultura ocidental e forjaram grande parte do que se entende por arte e, principalmente, por fazer literário e poético que reproduzimos hoje. Provavelmente, é também delas de que está imbuído, direta e indiretamente, um dos textos considerados fundamentais da teoria literária modernista ocidental, o Tradição e talento individual de T. S. Eliot, escrito em 1919.

Neste material, Eliot reflete sobre o fazer literário sob a perspectiva, entre outras e principalmente, de uma necessidade de uma distanciação entre o autor, o “eu” que escreve, o eu biográfico do poeta, suas experiências pessoais e sentimentos particulares, do eu lírico, aquele que fala no poema. Para Eliot, não se deve buscar no poeta a essência da poesia, mas na própria poesia em si: “A crítica honesta e a avaliação sensível dirigem-se, não ao poeta, mas à poesia”, nas palavras do autor (ELIOT, 1989, p. 42).

Não é que Eliot não compreenda, de certo modo, as experiências do sujeito como matéria-prima ficcional e poética. É que, para ele, o autor elevado lança sim mão de sua experiência de vida, mas a transforma a fim de atingir um determinado efeito, cujo resultado é algo completamente novo, que não pertence à subjetividade do artista, mas existe por si só no espaço poético.

O objetivo do poeta não é descobrir novas emoções, mas utilizar as corriqueiras e, trabalhando-as no elevado nível poético, exprimir sentimentos que não se encontram em absoluto nas emoções como tais. E emoções que ele jamais experimentou servirão, por sua vez, tanto quanto as que lhe são familiares. (ELIOT, 1989, p. 47)

Segundo Eliot, as emoções e experiências do eu que escreve, em vez de estarem ali em essência no texto, fazem parte de um grande mosaico, que o deve ser capaz de assimilar e transmutar em outros significados.

A mente do poeta é de fato um receptáculo destinado a capturar e armazenar um sem-número de sentimentos, frases, imagens, que ali permanecem até que todas as partículas capazes de se unir para formar um novo composto estejam presentes juntas. (ELIOT, 1989, p. 44)

Tirando o foco dos sentimentos emoções do sujeito que escreve, Eliot, ainda, deposita no processo artístico em si e na intensidade desse fazer as premissas para a produção da poesia. No entanto, longe de ter um papel protagonista nesse processo, Eliot acredita ser autor apenas um meio pelo qual a poesia, que vale por si mesma, nasce, um catalisador.

É com base nessas premissas que, em seu texto, Eliot propõe o que chama de teoria da impessoalidade, na qual somente uma arte oriunda de um processo poético distanciado da experiência pessoal do autor, despersonalizado, seria capaz de gerar uma poesia elevada, digna de validade e validação. O trecho final de Tradição e talento individual resume bem as ideias que Eliot destrincha nas páginas anteriores e que acima foram resumidas:

Desviar o interesse do poeta para a poesia é um objetivo louvável, pois isso levaria em verdade a uma avaliação mais justa da poesia atual, quer seja boa, quer seja má. Há muitas pessoas que apreciam a expressão de uma emoção sincera em verso, e há um grupo mais seleto de pessoas que podem apreciar a excelência técnica. Mas muito poucos sabem quando ocorre uma expressão de significativa emoção, emoção que tem sua vida no poema, e não na história do poeta. A emoção da arte é impessoal. E o poeta não pode alcançar essa impessoalidade sem entregar-se ele próprio inteiramente à obra que será concebida. E não é provável que ele saiba o que será concebido, a menos que viva naquilo que não é apenas o presente, mas o momento presente do passado, a menos que esteja consciente; não do que está morto, mas do que agora continua a viver. (ELIOT, 1989, p.48)

Em paralelo, no artigo “Inquietudes na poesia de Drummond”, escrito em 1985 e publicado no livro Vários escritos, o crítico e teórico literário Antonio Candido analisa a obra de Carlos Drummond de Andrade e circunda, entre outros aspectos, ainda que de modo menos direto e até inconclusivo, a ideia desenvolvida por Eliot sobre um fazer poético impessoal como prerrogativa de lírica válida, digna de fruição e da prosperidade canônica.

A ideia sobre uma poesia impessoal no texto de Candido é utilizada para que se analise a luta de forças (por isso inquietudes), às quais a Candido é aparente, no fazer poético de Drummond, que ora parece digladiar-se com uma urdidura que preza a experiência do eu, ora que valoriza a esfera do mundo, expressa não só pela sua poesia existencial-universal como pela lírica política engajada.

Antonio Candido divide a obra de Drummond em dois momentos. Um, caracterizado pelas duas publicações de estreia (Alguma poesia, 1930, e Brejo das almas, 1934), no qual o poema se limita a registrar os elementos como se o fato poético tivesse valor em si. “O sentimento, os acontecimentos, o espetáculo material e espiritual do mundo são tratados como se o poeta limitasse a registrá-los”, diz Candido (2023, p.73), complementando que esse tratamento “garantiria a validade do fato como objeto poético bastante em si” (Ibid.). A essa artesania, Candido afirma ter voltado Drummond trinta anos depois, em seu último livro publicado em vida, Lição de coisas (1962), porém, a este turno, em um jogo de requinte maior da palavra. Trata-se de uma poesia na qual “não parece colocar em dúvida (ao menos de maneira não ostensiva) a integridade do ser, a sua ligação com o mundo, a legitimidade de sua criação” (CANDIDO, 2023, p. 73).

O segundo momento, para Candido, seria o permeio da produção artística de Drummond, entre 1935 e 1959, no qual há no poeta uma “espécie de desconfiança aguda no que diz e que faz” (as tais inquietudes). “Se aborda o ser, imediatamente lhe ocorre que seria melhor tratar do mundo; se aborda o mundo, que melhor fora limitar-se ao modo de ser.” (Ibid.). Nesta feita, para Candido, o registro se desfaria e se tornaria processo, dando origem a um objeto novo, justificado pela destruição ritual do ser e do mundo para refazê-los no plano estético. Porém, Candido afirma que este mesmo distanciamento parece logo ser logo conduzido pelas mãos da dúvida a uma abordagem do ser e do mundo no estado pré-poético bruto.  

Tais perplexidades se organizam a partir de Sentimento mundo e José, títulos que indicam a polaridade de sua obra madura, de um lado a preocupação com os problemas sociais, do outro com problemas individuais, ambos referidos ao problema decisivo da expressão, que efetua sua síntese. (Idem, p.74)

E mais à frente:

No livro inicial domina a ideia de que a poesia vem de fora, é dada sobretudo pela natureza do objeto poético, segundo a reconsideração do mundo graças à qual os modernistas romperam com as convenções acadêmicas.
A poesia parece acontecer sob o estímulo do assunto.

Já em A rosa do Povo [1945], acontece justamente o contrário, a atividade poética chega a parecer uma espécie de desabafo, que se justifica pelo prazer, o alívio ou a atividade que proporciona. (CANDIDO, 2023, p. 95).

Os trechos supracitados demonstram a proposta de Candido de mostrar as “inquietudes” de Drummond sobre os próprios fazer e temática poéticos, as quais acabam expressas na obra do poeta e a quem, para Candido, o eu é uma espécie de pecado poético inevitável, que precisa incorrer para criar, algo que o horroriza e [que] o [a Drummond] atrai (Idem, p. 75).

Na sequência, o texto de Cândido se volta de forma mais direcional ao paradigma do fazer poético citado no início deste trabalho, aos elementos necessários para que uma obra, especialmente poética, seja considerada uma poesia essencial, a que Aristóteles e Eliot gastaram a pena no papel.

Em um trecho, nota-se clara a aproximação das ideias de o que é ou não poesia válida da teoria da impessoalidade de Eliot e sobre a validade da poesia pessoal versus a natureza do verbo poético. Candido assim indaga:

Terá o artista o direito de impor aos outros a sua emoção, os pormenores de sua vida? O “sentimento mundo” não exige a renúncia do universo individual das lembranças do passado e emoções do presente? Terão elas justificativas se o poeta souber ordená-las numa estrutura que ofereça aos outros uma visão do mundo, permitindo-lhes organizar a sua própria? (CANDIDO, 2023, p. 78)

Tanto Eliot como Candido versam sobre a legitimidade da poesia, a qual depende do seu fazer poético e formal para serem consideradas obra de arte, uma obra digna de ser lida, relida, perpetuada, retomada e modelo para obras e artistas vindouros. Em resumo, estão defendendo prerrogativas de definição do que é ou não cânone.

Muitos são os teóricos debruçados a esta questão da construção de cânone. Recorramos a apenas a um a fim de relembrar as engrenagens do sistema: em “Cânon”, artigo presente no livro Palavras da crítica: tendências e conceitos literários no estudo da literatura, de organização de José Luis Jobim, Roberto Reis dedica-se a mapear os mecanismos de construção do conceito de cânone (para o qual adota a nomenclatura “cânon”, que, do grego, kanon, significa vara de medir). Vejamos a definição de cânone segundo Reis:

Nas artes em geral e na literatura, que nos interessa mais de perto, cânon significa um perene e exemplar conjunto de obras – os clássicos, as obras-primas dos grandes mestres-, um patrimônio da humanidade (e, hoje percebemos com mais clareza, esta “humanidade” é muito fechada e restrita) a ser preservado para as futuras gerações, cujo valor é indisputável. (REIS, 1992, p. 70-71).

Porém, como hoje sabemos, cânone é um conceito formado sob axiomas controversos e até socialmente opressores. Isso porque, a definição do cânone e de prerrogativas (como as que sugerem as ideias de Eliot e Candido) restringem o ângulo e não abarcam inúmeras outras formas de expressão artística, sendo, assim excludentes. São conceitos por vezes aleatórios, elitistas e definidos por quem detém o privilégio da palavra, da produção e veiculação do saber formal. Oportunamente, Reis questiona:

Principiemos o questionamento desta posição colocando que a própria noção de literatura é ideológica, estando inextricavelmente ligada à questão do poder. O conceito de literatura tem cumprido uma nítida função social: no final do século XVIII e princípios do século XIX – acompanhado da disciplina que o legitimaria, a estética — criou-se este território desinteressado, onde a suprema beleza poderia ser contemplada a salvo das mazelas pelo capitalismo que arrancava célere rumo a seu apogeu. Suponho que não por mera coincidência a entronização do termo tem por corolários não apenas a ideia de capitalismo, mas de indivíduo (ênfase acentuada no autor ou, posteriormente, no crítico) e da burguesia que o usaria para autenticar-se. Mais tarde, a literatura servirá para enaltecer um certo tipo de escrita, peculiar às elites edt cadas e, como resultado, ser:’io desprezadas outras formas, bem m:us populares, ele cultura.  (REIS, 1992, p. 70-71).

A Eliot e a Candido, e a engrenagens forjadora de cânone prevalente na história ocidental, uma poesia focada no eu, no autobiográfico, na qual dos dedos do poeta fluam suas experiências e emoções pessoais passadas e circunstanciais para povoar o espaço do poema, seria considerada menor em relação a uma estética “elaborada”, “clássica”, com base numa experiência mais distanciada, em que a matéria poética reflita universalidade e valha por si mesma.

Os defensores do cânon possivelmente argumentariam que as

obras litenírias possuem qualidades intrínsecas, estão dotadas ele um valor estético – a sua “literariedade” (e uso o termo de um modo emblemático, para condensar distintas correntes que privi­ legiaram e continuam a privilegiar o primado do texto, acabando por instituir, ao sacramentá-lo e fetichizá-lo, a tirania do texto). Em poucas palavras, é possível detectar este valor inato e inerente à obra, sem levar em conta nenhum elemento “externo”. Não é à toa, convém frisar, que a canonização abstrai esta eleita plêiade de obras de suas circunstâncias históricas. (REIS, 1992, p. 71).

No paradigma teórico sobre o que é arte e literatura, do mesmo modo que não é de hoje que se tem determinado fórmulas para definir o que é válido como arte, também não é atualíssimo (embora menos forte) movimentos teóricos que colocam em xeque preceitos, se não caducos, incompletos, que tentam enjaular o fazer artístico.

A própria contemporaneidade tratou de impor sua toada para este processo. As demandas do pós-utópico, a tecnologia, novas formas de produção e meio de veiculação deram mais voz e visibilidade a grupos minorizados e marginalizados, que pedem voz e trazem à cena, trazem diferentes centros de valor à literatura, especialmente na poesia.

No campo da literatura, especificamente, ao longo da história ocidental, diversas propostas geraram rupturas… O romantismo europeu, vanguardas europeias e, localmente, o próprio modernismo brasileiro.

Ainda, mais fortemente, a partir da década de 1970, novas correntes e estudos sobre comparativismo e literatura comparada trouxeram à discussão novos elementos. Antes, estudos literários tendiam quase que exclusivamente à soberania da universalidade em detrimento do sujeito, sob uma visão etnocêntrica europeia e/ou norte-americana. A partir de então, foram trazidos à baila temas como a desierarquização de elementos envolvidos no processo de comparação em teoria literária, a relevância de questões identitárias na literatura, proposições diversas de decolonização da literatura, tanto em relação à cultura europeia quanto a grupos hegemônicos dominantes etc. O diálogo transcultural passou também à pauta, fazendo com que o campo da possibilidade literária e, claro, poética, se expandisse.

Para além do campo teórico, movimentos identitários, como o movimento negro, o feminista e LGBTQIA+, também passaram a buscar o seu lugar de fala com suas obras e para redefinir o que é literatura.

Diante desses novos tempos, teorias como as propostas por Eliot e Cândido não são capazes de capturar a essência da contemporaneidade, pelo menos não isoladas. Elas não dão conta de formas de expressão suscitadas pela contemporaneidade. São, portanto, como já dito acima, no mínimo, incompletas. Mais, são hegemônicas, excludentes e limitadas, como hoje sabemos ser o processo de conceituação artística canônica ocidental a que serviam. Vejamos o que diz Roberto Reis:

O critério para se questionar um texto literário não pode  se descurar do fato ele que, numa dada circunstância histórica, indivíduos dotados de poder atribuíram o estatuto de literário àquele texto (e não a outros), canonizando-o. (REIS, 1992, p.68)

Ainda, sobre o conceito de cânone e suas forjas, Roberto Reis diz que, é “ao se questionar o processo de canonização de obras literárias é, em última instância, colocar em xeque os mecanismos de poder a ele subjacentes”

[…] a escrita e a leitura estão sujeitas a variadas formas de controle e têm sido utilizadas como instrumento ele dominação social. Nos dias aluais, a instituição mais empenhada nesta tarefa é a universidade (onde se ensina a ler as “grandes obra”, chancelando, desta maneira, o cânon literário), que se presta a reproduzir a estratificada estrututuração social. (REIS, 1992, p.72)

É o que acontece com dois textos de poetas contemporâneas que serão explicitados aqui. Eles ilustram bem o que fora citado acima, posto que não se encaixam no que Eliot e Candido delimitam (ou seriam Eliot e Cândido que não se encaixam nelas?). Em Martelo e em Vingar, Adelaide Ivánova e Danielle Magalhães, respectivamente, duas autoras brasileiras nascidas na década de 1980, escrevem poesia em torno do autobiográfico, deixando transparecer as cores de suas experiências pessoais, principalmente, com mulher — certamente não sob as bençãos de Eliot ou Candido, para os quais poesia pautada no subjetivo consiste em um fazer poético inadequado, “menor”.

Vejamos dois poemas de Ivánova, “O martelo” e “A banana”, e tiremos nossas próprias conclusões sobre a contundência de sua poesia e de ela ser ou não digna de validade, mesmo seguindo a tendência contemporânea de uma arte mais focada na subjetividade.

o martelo

durmo com um martelo/ embaixo do travesseiro/ caso alguém entre de novo/ e sorrateiro/ no meu quarto não bastasse/ ser um saco ter um ferro/ me cutucando a cabeça/há ainda outro inconveniente:/ Humboldt nunca pode chegar/ de surpresa corre o risco/ de ser martelado e assim/ morrer ou viver/ (a quantidade de energia/ liberada pelo golpe de/ um martelo/ é equivalente à metade de/ sua massa vezes a velocidade/ ao quadrado na hora do impacto). (IVÁNOVA, 2017, p. 11)

a banana

no porão tinha/ uma mala dentro dela/ josefine/ que aí se escondia com/ a ajuda da mãe para/ que não fosse estuprada/ afinal só se estupra alguém/ que se acha o destino da/ mãe não se sabe mas/ josefine/ está bem obrigada aos 11 anos/ comeu banana pela/ primeira vez oferecimento do/ oficial francês que também/ dava abortos às alemãs/ que não tinham martelos/ ou malas. (IVÁNOVA, 2017, p. 15)

Ivánova (1982) é uma poeta brasileira de ascendência russa. Nos dois poemas supracitados podemos notar no entrelinhas a presença do autobiográfico, ainda mais quando se recorre à biografia da autora. Ela explora em ambos os textos a experiência do que é ser mulher e estar sempre vulnerável à violência física e sexual. Ainda, especialmente no segundo, parece recorrer ao espaço físico e de experiência antepassado. Em “O martelo”, o medo é tanto, a ponto do eu lírico, uma mulher, precisar de um martelo para se defender caso alguém entre novamente em seu quarto (veja, alguém já entrou, a violência já houve e ela sabe que mais pode vir).

Já em “A banana”, a temática da vulnerabilidade feminina é a mesma, porém, adicionada uma camada, a vulnerabilidade feminina infantil. Nele, Josefine, de 11 anos, está escondida numa mala no porão para não ser estuprada no que parece ser tempo de guerra, na Europa, provavelmente a Segunda Guerra, na qual a Rússia ficou implicada em alguns momentos à Alemanha e fora ocupada por tropas Aliadas (presume-se, já que ela menciona o soldado “bondoso” francês, que, aliás, oferecia abortos — e aí um recurso bastante interessante de Ivánova de captura do leitor pela retomada do poema anterior, “O martelo” — a mulheres que não tinham martelos e engravidaram como consequência de estupros).  

Outro aspecto interessante da poesia de Adelaide Ivánova é que, como uma mulher nascida na década de 1980, ela não esteve, obviamente, na Rússia ocupada durante a guerra. Mas, Josefine, uma menina de 11 anos à época, e sua mãe sim, o que nos leva a pensar por meio de que caminhos chegaram a Ivánova essas narrativas. Seriam memórias de suas antepassadas? Seriam as memórias de mulheres russas que com ela compartilham a origem? De todo modo, são elementos biográficos da autora que, de nenhum algum, entendemos hoje, diminui o efeito da poesia no leitor. E mais: não é preciso ser mulher para ter empatia e sentir a supressão de ar ao se pensar na mulher que tem um martelo em casa e em Josefine e sua mãe expostas à toda vulnerabilidade de uma mulher e uma MENINA frente à guerra. Compartilhamos conhecimentos suficientes para assimilar um grande número de experiências que não necessariamente vivemos e, quando não somos vulneráveis à realidade exposta no poema, temos conhecimento. Assim, o subjetivo se torna universal, posto que não só diversas pessoas (ocidentais) compartilham da mesma experiência como outras as compartilham por extensão, sendo capazes de capturar o significado da experiência expressa pelo eu lírico.

Vejamos mais um poema, desta vez de Danielle Magalhães, do livro Vingar:

amáveis

somos matáveis/ apenas mais ou menos/ matáveis/ mais rapidamente ou mais vagarosamente/ matáveis/ isso sempre foi grave/ mas a gravidade hoje/ talvez recaia/ no assombro de ver/ que isso está explícito/ desvelado sem véus descarado/ às caras e às claras somos/ matáveis/  pobre preto favelado/ é mais matável que eu/ em relação a um homem/ enquanto mulher eu/ sou mais matável mas/ em relação a uma mulher lésbica/ sou menos matável/ em relação a/ uma mulher/ como minha mãe/ pensionista do Estado/ mas ela é menos/ matável/ que o pobre/ preto favelado/ mas ela é mais/ matável/ que eu/ nesta escala/ eu me considero privilegiadamente salva/ não porque tenho vida/ mas porque sou menos matável/ quando vou às manifestações/ sou mais matável/ que as minhas cachorras/ que ficam em casa/ em qualquer lugar/ somos matáveis/ enquanto deveríamos ser apenas/ amáveis/ nessa relação/ a palavra amável/ está na palavra matável/ está aí/ o vínculo entre amor e morte/ nessa relação/ em que uns podem ser mortos/ rapidamente/ e outros podem ser mortos/ aos poucos/ os poderosos não são matáveis/ porque se fossem/ já estariam mortos/ há muito tempo/ os poderosos não são/ matáveis/ nem amáveis/ eles não/ eles não apontam para o fim/ eles não são/ o outro/ eles são/ o poder (MAGALHÃES, 2021, p.p. 18-21)

Mais uma vez temos a presença (digamos intuitiva por parte do leitor, mas claramente capturáve por Danielle ser uma mulher) do autobiográfico no poema e da vulnerabilidade feminina na sociedade. A autora faz um jogo entre o que se espera das mulheres, que sejamos amáveis, mas o que de fato fazem conosco, nos matam. Além do jogo semiótico da palavra, há o jogo com o signo gráfico em si e a sonoridade da palavra: aMÁveis, MAtaVéis.

Nascida em 1990, portanto, uma geração mais ou menos depois de Ivánova, Danielle traz semelhante centro de valor (vulnerabilidade feminina), mas sob uma ótica talvez mais social e urbana de violência, contrapondo essa vulnerabilidade também à esfera de poder política, de dominação dos corpos, de valoração e hierarquização de gênero.

A questão é que, nas duas autoras, a abordagem do autobiográfico de forma alguma apequena a beleza poética ou invalida o conteúdo como produção poética, pelo contrário. Hoje, mais libertos de conceitos e preconceitos, mais atentos a refletir criticamente sobre o cânone e como ele foi forjado, entendemos que essa matéria pode, inclusive, dar ainda mais beleza e credibilidade ao poema.

Se apegar a teorias caducas sobre forma e temática poética limitadoras é na verdade restringir as possibilidades artísticas e uma forma de reforçar um cânone excludente, que, como sabemos, precisa ser confrontado em busca de um espaço mais democrático, como nos afirma Ricardo Reis (1992, p. 72): “ao se questionar o processo de canonização de obras literárias é, em última instância, colocar em xeque os mecanismos de poder a ele subjacentes”. E continua: [somente assim] “o estudo da literatura seria melhor equacionado, considerando-o dentro das dinâmica das práticas sociais” (Idem), proporcionando um ambiente mais diverso de produção e vivência artísticas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CARVALHAL, T.  Literatura comparada. 4. ed. São Paulo: Ática, 2006.

COUTINHO, E. “Literatura comparada hoje”. In: Estudos comparados: Teoria, crítica e metodologia: Abdala JR., Benjamin (org.) São Paulo, Ateliê Editorial, 2014.BAUMAN, Z. O Mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.

__________. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.         

JAMESON, F. Pós-modernismo: A lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 1991.         

ELIOT, T. S. Tradição e talento individual. In: Ensaios. São Paulo: Art   Editora, 1989.

CANDIDO, A. Vários escritos. 1. ed. São Paulo: Todavia, 2023.

IVÁNOVA, A. Martelo. Rio de Janeiro, Edições Garupa, 2017.

MAGALHÃES, D. Vingar. 1. ed. – Rio de Janeiro: 7Letras, 2021;

MORICONI, I. Como e por que ler: A poesia brasileira do século xx. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.

REIS, R. “Cânon”. In: Palavras da crítica: tendências e conceitos literários no estudo da literatura, de organização de José Luis Jobim (org.)