Nota do Blog: Esta matéria foi publicada originalmente no site Conexão Sesc.
Um museu onde é possível tocar e interagir com peças e obras, ver o artista em processo de criação, ouvir suas histórias e tomar um café fresquinho, passado ali mesmo, na cozinha de sua casa ou em sua oficina. Assim são os Museus Orgânicos, iniciativa que valoriza e mantém vivas as manifestações populares da região do Cariri, no interior do Ceará, que tem como representantes os Mestres de Tradição, ícones do folclore brasileiro.
Um deles é Mestre Antônio Luiz, idealizador e brincante do grupo Reisado de Caretas, manifestação folclórica que faz menção ao Dia de Reis. Ele e sua esposa, Dona Rosa, moram em Potengi, a cerca de 500 quilômetros de Fortaleza. Sua casa, que abriga fotografias, instrumentos e máscaras de caretas foi transformada em Museu Orgânico pelo Sesc no Ceará em parceria com a Fundação Casa Grande.

Quem também teve sua oficina transformada em acervo vivo foi Francisco Dias de Oliveira, artesão de flandre, ofício que dá forma a objetos a partir de uma fina lâmina de metal. Agora, o visitante pode se encantar com um vasto acervo que inclui 32 aeronaves, ultraleves, helicópteros, foguetes e até disco voador. As obras são fruto do fascínio do Mestre Françuili, como é conhecido na região, pelo céu e por aeronaves. Um dia, olhou para o alto, viu um avião e começou a criar. As miniaturas, caprichosas e detalhistas, algumas até motorizadas, são reproduzidas a partir de seu olhar.

Curadoria e afeto
Com ricas manifestações populares, o Cariri abrange os municípios de Juazeiro do Norte, Crato e Barbalha e é conhecido pela reverência aos Mestres de Cultura, homens e mulheres que carregam a tradição regional. A maioria é reconhecida pelo estado do Ceará como Tesouro Vivo da Cultura Popular graças a seus saberes, ofícios e expressões artísticas.
O projeto começou a ser colocado em prática pelo Sesc no início de 2017, junto à Fundação Casa Grande, uma instituição que oferece atividades culturais, de formação para as crianças, jovens e adultos, assim como de estímulo ao empreendedorismo e geração de renda. “A proposta é levar as pessoas a descobrir o universo da tradição popular e, assim, preservar a memória e ampliar o reconhecimento dos Mestres e suas atividades”, explicou Elane Lavor, Gerente da Unidade do Sesc em Juazeiro do Norte.
Ao longo de um ano, Elane percorreu a região do Cariri, visitando as casas, oficinas e coletivos para conhecer os Mestres, suas histórias e poder, assim, reforçar o legado desses homens e mulheres. Além da curadoria e reunião de acervo para exposição, o projeto envolve um processo de intervenção e reorganização, para receber o público. É o que explica Elane:
– Tudo é feito na base de muita conversa com os Mestres e suas famílias. Estamos falando de intervenções dentro das casas e espaços de trabalho dessas pessoas. Há um envolvimento afetivo… E não só deles, nosso também. Desde que comecei a atuar nessa empreitada, eu não sou mais a mesma. Minha vida mudou.
A expectativa é de que mais 14 Mestres e Mestras tenham, ao longo dos próximos anos, os espaços de criação ou as casas transformadas em Museus Orgânicos. No bordado ou no tear, na condução de grupos de música e canto populares, no artesanato, as mulheres são as guardiãs de uma cultura ancestral e consideradas fortalezas da tradição regional.
Turismo de experiência: um outro olhar sobre a vida
Ronaldo Ferreira é dono de uma pousada em Guaramiranga (a pouco mais de 100 quilômetros de Fortaleza). Ele e o sócio ouviram falar do projeto de Museus Orgânicos que se desenhava no Cariri e foram conferir para “se inspirar e, quem sabe, no futuro, desenvolver algo semelhante no entorno da pousada”, nas palavras de Ronaldo.
Para o empresário, que conheceu as instalações de Françuili e Antônio Luiz, o turismo de experiência, que leva viajantes a participar do cotidiano da população local, é uma modalidade cada vez mais valorizada, que esquenta a economia e dá força à comunidade. “Hoje, as pessoas buscam experiências singulares quando viajam. Querem conhecer a cultura, costumes e tradição por intermédio de vivências reais”, complementou.
O turismo de experiência tem ganhado a preferência — e o coração — de viajantes de todo o mundo. No último relatório produzido pelo Sistema de Inteligência Setorial (SIS) do Sebrae, a modalidade é apontada como um grande filão para empreendedores, segmentos afins do setor de turismo e, ainda, uma alavanca para a economia e geração de renda para membros da comunidade.
Bacamarteiros da Paz
Criado por Francisco Novais, o Bacamarteiros da Paz é composto por filhos, netos e outros membros da família de Mestre Nena, como é chamado o criador e brincador mais antigo de bacamartes (arma de chumbo grosso) do Cariri. Desde 2006, o quartel general do grupo é a garagem de Mestre Nena, em Juazeiro. O lugar, que fica em frente a uma praça, onde são realizados ensaios e apresentações, recebe os preparativos finais para a inauguração do espaço como Museu Orgânico. “É uma grande honra, eu estou muito agradecido. Fui com minha família conhecer os museus de outros mestres e estou ansioso para a inauguração”, confessou o Mestre.

A garagem da casa que, agora abriga o Museu Orgânico, conta com fotos, instrumentos, letras de cantigas típicas escritas à mão coladas nas paredes e muitos outros objetos que remontam não só a história do Mestre Nena mas a do Nordeste e do Brasil também.
Incentivo à comunidade
Além de oficializar o circuito de turismo cultural e social do Cariri, o projeto Museus Orgânicos possibilita aos Mestres outras fontes de renda, contribuindo com a sustentabilidade econômica de atividades relacionadas às tradições. “Além de representar uma rede de espaços de memória, que fortalece raízes culturais e preserva a história, gera uma movimentação do processo criativo, do turismo e da economia da região”, complementou Elane Lavor.
Não faltam exemplos de que esse movimento se expande já na prática. Para começar, os Mestres têm a oportunidade de se apresentarem mais vezes, em terreiradas, eventos ou exibições especiais a grupos de turistas, fora de datas festivas ou religiosas.

E não é só isso. A empresa de turismo comunitário de Júnior dos Santos, originada sob a tutela da Fundação Casa Grande, em 2012, é um dos empreendimentos locais a participar do ciclo. Júnior conhece os Mestres desde pequenino e já cuidava para que visitantes conhecessem espaços de cultura popular do Cariri. Com o estabelecimento dos Museus Orgânicos, cuida de intermediar pacotes que possam trazer renda para a comunidade:
– Conhecemos cada família e buscamos unir o interesse dos visitantes ao que cada casa pode oferecer. As mulheres da comunidade abrem suas cozinhas para café da manhã, almoço e até coquetéis para as terreiradas. Os brincantes podem vender artefatos e lembrancinhas de suas expressões artísticas.

Mais uma mostra desse fortalecimento da economia sustentável de tradições do Cariri é o que acontece na casa-museu de Mestre Antônio Luiz e Dona Rosa. Assim, o cafezinho e bolo saem da cozinha da anfitriã. E, em dia de visita, ela expõe a própria arte: tapetes, caminhos, centros de mesa e outras peças feitas de retalhos e sobras de tecidos que recebe de iniciativas locais. Dessa forma, complementam a renda que tiram do cultivo da terra.
Experiência orgânica e de muitos sentidos
O jovem Felipe Gurgel, Coordenador de Marketing do Sesc no Ceará, esteve no Cariri para uma visita relacionada a outra atividade, a Mostra Cariri. Como não conhecia a região, foi levado por Elane até a casa do Mestre Antônio Luiz.
Na visita ao Museu Orgânico do Reisado de Caretas, Felipe, que é ator e possui formação em canto e dança, logo se alinhou com o Mestre Antônio Luiz. Os dois acabaram tocando instrumentos e arriscando uma dança popular ensinada pelo Mestre. Felipe relata essa experiência:
– O conhecimento dos Mestres de Cultura a gente não acha em lugar nenhum, não está no Google, sabe? Lá quem te conduz pela história, te faz conhecer a música e dança das tradições, são as pessoas que ainda cultivam aquela realidade. Foi muito impactante.

A mesma sensação arrebatou Débora Alencar, moradora do Cariri, que, apesar de atuar como guia de turismo, não costumava operar na rota dos Museus Orgânicos. Ela foi levada por Júnior a conhecer a região. “Quando a gente ouve falar, não tem ideia do que vai encontrar. É impossível explicar o que sentimos ao estar lá, comer com os mestres, ouvir seus sonhos”, revelou a jovem.

Contato com a terra e a vida do sertanejo
Conhecer raízes profundas do Nordeste e do sertanejo é mais uma possibilidade da vivência proposta pelos Museus Orgânicos. Para quem mora nas grandes cidades, conhecimentos e práticas relacionadas à terra e ao cotidiano do sertanejo podem ter se perdido num passado distante. A pesquisadora Merces Parente mora em Brasília. Como voluntária da Casa Grande, ela viaja regularmente ao Cariri, conhece cada museu e reúne algumas passagens interessantes de suas visitas. Uma é especialmente divertida:
– Existe um costume no interior de armazenar grãos de feijão em garrafas PET. São enormes quantidades de feijão, da roça da família, engarrafado, para o ano todo. Esse estoque desperta a curiosidade dos visitantes. Os residentes explicam que esse armazenamento preserva o conteúdo e evita as pragas.

Trilha sonora do Cariri
O produtor cultural Aécio Diniz é mais um parceiro do Sesc e da Fundação Casa Grande na implementação dos museus no Cariri. Ele dá suporte à curadoria e seleção de peças do arquivo pessoal dos Mestres que comporão o acervo orgânico pela Casa de Produção Cultural.
Garoto crescido no Cariri e ainda hoje morador da região, Aécio, que também é músico, conhece os Mestres pela vida toda. Enquanto participa do processo, tem oportunidade de reforçar seus laços afetivos. Tanto que, para cada Museu Orgânico já inaugurado, compôs uma canção:
– O trabalho diário com os Mestres nesse projeto inspirou a composição dessas três canções. Pretendo fazer uma para cada Museu. Depois, quero fazer um disco, reunindo essas composições, como forma de celebrar a cultura e a obra dessas pessoas.
Em tempo, a parceria Sesc e Fundação Casa Grande prevê, no futuro, a edição de um livro sobre a rota de tradição do Cariri, os Museus Orgânicos, a história das brincadeiras, dos Mestres e a importância dessas manifestações para a cultura brasileira.
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