“Um defeito de cor”, Ana Maria Gonçalves

Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves (AMG), foi o livro que mais marcou as minhas leituras no primeiro semestre deste ano. Nesse romance histórico, publicado em 2006, fatos reais inspiraram a ficção de Ana Maria Gonçalves. Em quase mil páginas, a autora desfiou uma narrativa cheia de reviravoltas, em um contexto que evidencia a cruel situação do negro em fins do século XIX (mais precisamente ao final do Brasil Império e início da República).

Trata-se de uma história que cruza o Atlântico. E volta e cruza de novo. Kehinde é capturada na África (Savalu, reino de Daomé, hoje, Benin, África Ocidental) e trazida como escrava para o Brasil aos oito anos. Em busca da liberdade e de um filho perdido, ela vive na Bahia, Maranhão, Rio de Janeiro, São Paulo, retorna à África, onde cria dois de seus filhos e é também conhecida como Luísa Gama (nome imposto pelo batismo cristão – que, na prática, não aconteceu) e se torna uma importante empresária da época.

Quem narra a saga é a própria personagem, já idosa, a bordo de uma viagem derradeira de volta ao Brasil. Com ela, ainda a esperança de encontrar o filho, vendido como escravo pelo pai para o pagamento de uma dívida de jogo.

Pausa aqui para um adendo: na obra, a autora aventa, assim-assim, meio que deixa implícito, que o poeta e advogado Luís Gama (1830-1882) – o próprio, o, da vida real, realíssima – seria o filho perdido de Kehinde. Aliás, uma frase dele legou nome ao romance: “Em nós, até a cor é um defeito”. A teia fica melhor: o nome da mãe de Luís Gama era mesmo Luísa, só que Mahin: Luísa Mahin, escrava liberta, cujos detalhes da vida parecem ter inspirado Gonçalves na criação da protagonista.

Além de um romance arrebatador, a obra em si é um retrato bastante completo da sociedade à época. O colonialismo, o sistema de plantation, o tráfico de escravos, a diáspora, a exploração dos corpos negros em todos os aspectos, injustiças e castigos inimagináveis, preconceitos e tabus são narrados em tristeza de detalhes.

Já os modos e costumes são descritos de forma quase única na literatura nacional, e não só pelo conteúdo, mas pela extensão e por ser feito pela voz do oprimido. Em Um defeito de cor é possível saber um pouco sobre os falares da época, sobre como os negros resistiam, cultuavam seus deuses, amavam, odiavam, se vingavam e se insurgiam.

As rixas e contendas entre negros de tribos diferentes, o banzo, o apagamento cultural e histórico, o sequestro da identidade, a situação dos negros libertos às vésperas e depois da Lei Áurea, a vida dos escravos de ganho, a miscigenação, o colorismo e as relações ambivalentes entre negros e portugueses são dinâmicas tratadas em um Brasil com vestígios frescos do colonialismo sob as unhas.

No decorrer da jornada, o livro relata como os acontecimentos históricos – ao mesmo tempo intrincados à trama e capazes de deflagrar os conflitos da protagonista –  levam a situação do negro a novas configurações: trocam-se apenas as formas de opressão, segregação e castigo. Essas nuanças são tratadas no livro, ora por meio das próprias experiências da protagonista, ora por meio das vivências daqueles que a cercam.

A obra ainda oferece um panorama sobre a construção da religião afro-brasileira e dos terreiros, ritos e costumes, e as origens da demonização das crenças de matriz africana. A tessitura de AMG oferece ao leitor um rico relato, capaz de produzir uma série de associações com esses cultos nos dias de hoje.

Há também um registro relativamente grande sobre a vida do negro escravo muçulmano no Brasil (pouco encontrado em obras de ficção ou mesmo históricas da literatura nacional), incluindo a participação desses indivíduos na Revolta dos Malés (1835).

Pausa para outro adendo: assim como a autora aventa ser Luísa/Kehinde a mãe do poeta Luís Gama, no livro, mais uma associação com possíveis fatos históricos é sugerida. Luísa da ficção participa ativamente da Revolta dos Malês, conflito do qual diz-se ter Mahin participado como articuladora.

Além disso tudo, a obra nos presenteia com um relato lítero-cultural da capital do Império, o Rio de Janeiro, em um século XXI em curso rumo à modernidade: as ruas do Centro, as lojas e comércio da rua Ouvidor e, claro, as desigualdades sociais urbanas.

O encontro de Ana Maria Gonçalves e Kehinde

Um defeito de cor nasceu de dois anos de pesquisa de Ana Maria Gonçalves. O conteúdo encontrado em documentos inspirou a autora, que colheu fragmentos e, como vimos com os exemplos de Luís Gama e sua mãe, os romanceou.

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Mas esse o processo de busca/inspiração também ganhou uma versão romanesca de Gonçalves. Logo no prólogo, a autora diz ter se inspirado em manuscritos achados em uma casa humilde da Ilha de Itaparica (Bahia). Segue o fio… Por acaso, durante uma temporada na região para escrever outro romance, ela teria conhecido uma mulher, responsável pela limpeza da igrejinha local. Tal mulher, um dia, em meio à faxina da sacristia, teria encontrado papéis e mais papéis velhos, destinados ao lixo pelo novo pároco. Pois que a mulher catou a papelada e levou para a casa, a fim de servir de papel de desenho a seu caçula.

Em uma visita à casa da família, AMG teria encontrado, nas mãos do garoto, entre um rabisco e outro, os escritos em um português empolado, fora de uso. Pedira as folhas, prometendo que eles seriam os primeiros a ouvir a história que ela estava prestes a reavivar. Teria sido dessas letras e frases, ora apagadas, ora incompletas, fragmentos de uma realidade longínqua, que Ana Maria extraíra o seu enredo.

O que é real ou fictício? Importa? Para mim, é impossível não crer em Kehinde como uma heroína brasileira de carne e osso, afinal, ela é em si a união de tantas mulheres e homens negros cuja história foi apagada pela violência do colonialismo.