Leiam “Pátria”

Não me lembro exatamente a referência que me levou a prestar atenção ao livro Pátria quando zapeava no Kindle (aliás, precisamos falar sobre Kindle e Amazon, mas não agora). Há algum tempo, tenho me dedicado a ler autoras femininas, e Pátria é de Fernando Aramburu*, autor espanhol contemporâneo. Logo, não seria a minha primeira escolha. Talvez estivesse gratuito (sim, precisamos falar sobre Kindle Unlimited, mas não agora) naquela semana ou eu tenha mesmo ouvido falar do livro em algum lugar e fiquei sugestionada (virou série da HBO de Portugal, veja o trailer).

“Pátria”, Fernando Aramburu, tradução Ari Roitman e Paulina Watch, Editora Intrínseca.

Ao ler a sinopse, achei interessante, por se tratar de uma narrativa que tem o conflito do País Basco e a organização terrorista ETA como cenário/contexto. Vi uma boa oportunidade de entender mais sobre a questão, sobre a qual sempre tive curiosidade. Baixei o livro.

Pátria é um livro sobre família, relacionamentos familiares, amizade… e sobre a perigosa tendência de causas políticas em se desvirtuarem, passarem a atender interesse míopes, distópicos, lunáticos, levando também à queda indivíduos que a ela se juntam.  

Pátria fala de fanatismo ideológico, de ufanismo, de chauvinismo, bairrismo, maniqueísmo. Mas fala também de patriotismo, de propósito sincero, ainda que construído com alicerce em meias verdades ou deturpado por interesses outros que nada têm a ver com a causa das gentes.

Em Pátria, há amor materno incondicional. Ao mesmo tempo, há o questionamento à falácia do “instinto materno”. Pátria fala sobre se de ter um limão e fazer uma limonada. Fala de encontrar a felicidade com aquilo que se tem e dentro das possibilidades. Pátria é muito gente real.

Temas, personagens e suas complexidades, com as contradições que carregamos todos nós, eu só iria descobrir depois e me enredar ainda mais naquela história. Mas logo na abertura, o que me fisgou foi a narrativa fluida, porém certeira, envolvente, bem humorada, ora leve, ora ácida. Nas primeiras linhas, somos apresentados a Bitore, uma das personagens principais, e sua personalidade pungente, zombeteira e sábia.

O autor tece sua história conduzindo o texto de modo que, à corrente do narrador em terceira pessoa, sejam amalgamados, de forma limpa, sem ruídos e organicamente, fluxo de consciência e diálogos (falados, pensados ou apenas lembrados pelos personagens). A beleza desse tipo de construção nos textos literários (ô talento), a meu ver, se dá, principalmente, porque, em vez de criar uma grande bagunça (afinal, pense: misturar narrativa, fluxo de consciência e diálogos de personagens num mesmo fôlego de parágrafo tem tudo para terminar em uma grande confusão), o autor cria uma melodia harmônica, capaz de transpor o leitor de forma muito natural para dentro da narrativa.

Trecho da primeira página de “Pátria”

É importante frisar que Aramburu não utiliza grifos como aspas, itálicos nem nada que os valha em muitos períodos para imprimir na narrativa seus altos e baixos e delimitar o que é voz do narrador, fluxo de pensamento ou diálogos. Ele faz isso com a gradação das palavras, a cadência das frases. Aramburu permite que as transições, a linguagem corporal dos personagens, silêncios, deixas, conflitos e cores das situações da história ganhem vida nas nossas cabeças por meio dessa tessitura.

A meu ver, o ator que faz esse tipo de narrativa eleva o “show don’t tell” a um outro patamar (risos). Para quem, assim como eu, acredita não haver universo mais mágico do que o das palavras, ufa, o que ele faz é um deleite do caralho! Ver mais sobre show don’t tell aqui. https://en.wikipedia.org/wiki/Show,_don’t_tell

Outro ponto alto da leitura é que a história não é linear, vai e volta ao passado (OK, nada demais, eu sei, calma). Mas até mesmo a narrativa do “presente” tem situações expostas em diferentes momentos, com maior ou menor detalhes, o que faz com que o leitor vá juntando algumas peças aos poucos, numa atmosfera de suspense, fiquei sem fôlego e (que!) descoberta. Vejam bem que eu tentei empregar a técnica do autor de mesclar a narrativa com o meu fluxo de consciência e diálogos mentais. Com reles talento, é verdade. Me permitam sonhar!